Nos últimos anos, o termo “comida de conforto sem culpa” vem circulando na internet e aparecendo no marketing das empresas, como a fabricante de sorvetes Halo Top, ou então em receitas publicadas na revista Fitness e exibidas no canal de TV Food Network. Muitas das receitas trocam frituras por alimentos assados, ou então sugerem o uso de queijo com baixo teor de gordura e “sorvetes” à base de iogurte e proteína vegana em pó.
No ano passado, foram publicados dois livros de receitas “sem culpa”: Mr. Food Test Kitchen’s Guilt-Free Comfort Favorites (“Receitas favoritas de comida de conforto sem culpa da cozinha de testes do Mr. Food”, em tradução livre), da Associação Americana de Diabetes, e The Guilt-Free Gourmet Cooking Guide 2019 (“O guia gourmet de cozinha sem culpa de 2019″, em tradução livre), inspirado nos Vigilantes do Peso.
“Sem culpa” sugere que comer qualquer coisa com muitos carboidratos, gordura ou açúcar deveria nos fazer correr para o confessionário para pedir perdão. A alimentação saudável é importante, mas por que a sociedade condena quem gosta de comida confortável (“comfort food”) de vez em quando?
“A comida não é moralmente boa ou ruim”, diz Alyssa Pike, nutricionista e coordenadora de comunicação da International Food Information Council Foundation. “Só quando a categorizamos dessa maneira é que sentimentos como vergonha ou culpa ficam associados a certas comidas. Quando paramos de rotular alimentos como bons ou ruins, deixamos de sentir culpa em relação a eles.”
Jen Bateman, também conhecida como Doutora Jen, é psicóloga de alimentação e se especializou em diabetes e controle de peso. Ela afirma que esse tipo de classificação presta um desserviço à saúde. “Quando dizemos que uma comida é ‘ruim’, podemos acabar criando um ciclo de rebelião, que só faz aumentar nossa vontade de consumi-la”, diz ela. “É o adolescente que vive dentro de todos nós e que não gosta de receber ordens. As pessoas sentem vergonha e muitas vezes perdem as esperanças. A sensação é ‘para que vou me privar?’, e o resultado é acabar se esbaldando.”
Só quando a categorizamos dessa maneira é que sentimentos como vergonha ou culpa ficam associados a certas comidas.Alyssa Pike, nutricionista
Ela também explica que uma atitude positiva em relação à comida ajuda no bem-estar emocional. “Na prática, isso significa liberdade para comer vários tipos de comidas diferentes, inclusive as supostamente ‘pouco saudáveis’”, afirma Bateman. “Mas muita gente precisa de apoio para conseguir fazer isso, especialmente se estiver usando a comida como um regulador emocional – elas usam a comida para se sentir reconfortadas ou distraídas. Outras pessoas recorrem ao álcool, às compras e ao sexo. Se a pessoa identificar um real vício no açúcar, por exemplo, tentar abster-se completamente pode ser uma decisão sábia.”
“A culpa é uma emoção forte”, diz Bateman, e este seria um dos motivos pelos quais a ideia do “sem culpa” se tornou onipresente.
“Há muitas mensagens sugerindo que as pessoas obesas deveriam perder peso com facilidade”, afirma ela. “Por exemplo: ‘Coma menos e faça mais atividades físicas’. Há muitas palavras negativas e humilhantes em torno da comida: ‘Eu não deveria’, ‘só hoje’, ‘me comportei bem então mereço’ e por aí vai. Somos programados a evitar a dor, então o termo ‘sem culpa’ provavelmente oferece um certo alívio. E isso ajuda o marketing das empresas.”
Pike associa a paixão recente dos americanos pela alimentação “pura” com essa pressão por um estilo de vida sem culpa. “Muitas vezes, a ideia de uma alimentação pura, ou saudável, é tão limitante que restam poucas alternativas”, afirma ela. “Então acabamos ficando obcecados, tentando encontrar alternativas saudáveis e que não nos deem a sensação de culpa.”
Em um post no blog da International Food Information Council Foundation, Pike escreve que essa tendência da alimentação “limpa” faz que as pessoas troquem as comidas verdadeiramente saudáveis pelo “privilégio de consumir produtos de embalagens bonitas, com ingredientes aprovados por influenciadores”. Isso significa excluir quem não pode fazer compras em supermercados mais chiques. “[A alimentação ‘pura’] implica que aqueles que não se dão ao trabalho de comer ‘direito’ são preguiçosos ou não são pessoas saudáveis”, escreveu ela.
Uma maneira de consertar esse complexo industrial da comida sem culpa é adotar uma dieta intuitiva.
“O mais importante é prestar atenção à sua fome, suas preferências e sua saúde”, diz Pike. “Quem come intuitivamente entende que a alimentação não é nem nunca será perfeita. Portanto, não há por que sentir culpa.” Em um post sobre alimentação intuitiva, Pike sugere uma escala de fome com emojis, que vai de morrendo de fome a cheio. O ponto ideal, claro, é estar satisfeito.
“Quando finalmente nos livramos das restrições em nossas escolhas, diminuem as chances de comer demais certas coisas”, diz Pike. “Sua alimentação é muito mais importante no longo prazo do que uma única refeição ou uma única comida. Seus padrões têm de ser sustentáveis no longo prazo, levando em conta suas preferências, seu orçamento e seu estilo de vida.”
Quem come intuitivamente entende que a alimentação não é nem nunca será perfeita. Portanto, não há por que sentir culpa.Alyssa Pike
Bateman espera que em algum momento o termo “sem culpa” não carregue mais tanto estigma. “Estar acima do peso está associado à baixa autoestima. Conforme deixamos de enxergar a obesidade como falta de motivação, força de vontade e disciplina, e na realidade encará-la como sintoma de angústia e possivelmente doenças mentais, acredito que teremos uma atitude mais cheia de compaixão”, afirma ela.
Por um mundo em que comer um ou outro pedaço de pizza (sem ser massa de couve-flor) não deixe ninguém morrendo de culpa.
(Fonte: Huff Post Brasil)
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